O uso de evidências para a estabilidade das decisões regulatórias
Por Alexandre Freire
No cenário complexo e dinâmico das decisões regulatórias, a busca por estabilidade e embasamento em fundamentos sólidos é essencial. Essa abordagem não apenas garante a eficácia das políticas implementadas, mas igualmente promove um ambiente de negócios previsível e propício ao crescimento sustentável. É importante lembrar que os reguladores possuem limitações cognitivas e estão sujeitos às mesmas heurísticas e vieses que as demais pessoas, recomendando-se certa cautela em alterações regulatórias[1].
Decisões regulatórias fundamentadas cientificamente tendem a gerar resultados positivos a longo prazo[2]. A análise de dados quantitativos e qualitativos possibilita uma compreensão aprofundada dos impactos das regulamentações em diferentes setores e grupos demográficos, possibilitando o desenvolvimento de políticas mais equilibradas e ajustadas às necessidades específicas da sociedade[3].
Além disso, a integração das ciências comportamentais no processo decisório traz uma dimensão humana fundamental. Compreender os padrões de comportamento, motivações e reações das pessoas frente às regulamentações é essencial para projetar políticas que sejam efetivamente implementadas e aceitas pela população. Utilizando insights da economia comportamental, como o desenho das arquiteturas de escolha, opções-padrão[4] e nudges[5], é possível antecipar como as pessoas responderão a incentivos e restrições, ajustando as regulamentações conforme necessário[6]. É igualmente relevante considerar os insights da neuroeconomia, que substitui a “construção ficcional da economia neoclássica de um indivíduo que maximiza a sua utilidade e tem um único objetivo, por um relato mais detalhado de como os seus componentes orgânicos – regiões do cérebro, controle cognitivo e circuitos neurais – interagem e se comunicam para determinar o próprio comportamento individual[7]“.
Contudo, não se deve negligenciar a estabilidade das decisões regulatórias enquanto se busca inovação e adaptação. Mudanças frequentes e imprevisíveis podem gerar incerteza e insegurança, impactando negativamente os investimentos e o desenvolvimento econômico. Portanto, é crucial estabelecer um equilíbrio entre a necessidade de atualização e a manutenção da estabilidade, garantindo que as regulamentações permaneçam relevantes e eficazes.
Para alcançar esse equilíbrio, é fundamental realizar uma análise abrangente dos impactos potenciais das alterações regulatórias, conduzindo testes piloto e a realização de consultas públicas para avaliar a viabilidade e aceitação das propostas. Além disso, é essencial acompanhar continuamente as evoluções econômicas, tecnológicas e sociais, adaptando as regulamentações conforme necessário, sempre com base em fundamentos sólidos e ampla consulta às partes interessadas[8], a fim de mitigar riscos e evitar políticas prejudiciais que possam piorar a situação daqueles que se pretende beneficiar[9].
Para exemplificar os desafios enfrentados pelo Conselho Diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), serão abordados três casos específicos: 01) o tratamento jurídico necessário para as prestadoras que adaptaram o Serviço de TV a Cabo para o SeAC, especialmente no que diz respeito às obrigações de atendimento de domicílios assumidas (conhecidas como home passed); 02) a suspensão cautelar da exigibilidade do indicador ICC (Índice de Chamadas Completadas), conforme previsto no art. 13 do Plano Geral de Metas de Qualidade para TV por Assinatura (PGMQ – TV por Assinatura), aprovado pela Resolução nº 411, de 14 de julho de 2005; e 03) discussão da validade de cláusula de exclusividade da contratação em ofertas de atacado de roaming, requeridas pelas três grandes prestadoras (Tim, Claro e Telefônica).
Com o advento da Lei nº 12.485/2011 (conhecida como Lei do SeAC), no primeiro caso (obrigações de home passed), estabeleceu-se um novo cenário regulatório em relação à legislação anterior – Lei nº 8.977/95 (Lei do Cabo). Esse novo cenário se caracterizou pela redução de barreiras à entrada, com um preço de autorização de R$ 9.000,00 (nove mil reais) para os novos prestadores, permitindo-se a utilização de qualquer tecnologia e sem a contrapartida de obrigações de atendimento na área de prestação.
Durante a aprovação da Resolução nº 692, de 12 de abril de 2018, o Conselho Diretor da Anatel determinou que as outorgas concedidas sob a legislação anterior poderiam ser adaptadas. Contudo, ressaltou-se que os compromissos (vencidos e vincendos) das concessões na data da adaptação deveriam ser cumpridos, não podendo ser definitivamente afastados[10] (art. 85, § 2º, da Resolução nº 692/2018). Além disso, o Conselho Diretor destacou que tais compromissos poderiam ser cumpridos por qualquer outra tecnologia, mesmo que na concessão inicial tenha sido estabelecida uma forma específica de atendimento.
Em paralelo, o Conselho Diretor da Anatel já havia fixado entendimento no sentido de que, com a vigência da Lei do SeAC, a adaptação da outorga e o descumprimento do cronograma de home passed poderiam resultar na aplicação de pena de caducidade nas concessões originárias. No entanto, considerou-se que a ausência desses compromissos para as autorizações concedidas após a sua vigência tornava desproporcional a declaração de caducidade nas concessões de cabo adaptadas para a Lei do SeAC. Essa medida foi tomada com a finalidade de minimizar as assimetrias regulatórias e de competição entre as prestadoras cujas autorizações foram adaptadas para a Lei do SeAC e aquelas que já obtiveram autorizações sob esta norma[11].
Portanto, de maneira geral, o descumprimento dos compromissos de home passed, de acordo com a legislação anterior, poderia resultar na aplicação da sanção de caducidade para as prestadoras que obtiveram suas concessões antes do advento da Lei do SeAC. Por outro lado, as prestadoras que foram inicialmente autorizadas conforme essa nova norma não estão sujeitas a qualquer compromisso de implantação e, consequentemente, não estão sujeitas a sanções relacionadas a tal descumprimento.
Para mitigar essa disparidade nos tratamentos regulatórios, o Conselho Diretor da Agência adotou posicionamento que inicialmente parecia não ter respaldo jurídico. No entanto, ao mantê-lo, foi possível reduzir distorções que poderiam comprometer a sustentabilidade dos modelos de negócios adotados pelas concessionárias que tiveram suas concessões adaptadas por consequência da Lei do SeAC. Isso se deve à assimetria regulatória entre as obrigações decorrentes das adaptações das concessões outorgadas na vigência da Lei do Cabo e aquelas estabelecidas em autorizações iniciadas posteriormente à Lei do SeAC.
O segundo caso refere-se à aferição do indicador ICC pelas prestadoras de TV por assinatura, que exigia o fornecimento de informações pelas prestadoras de telefonia àquelas. No entanto, elas já não eram mais obrigadas a disponibilizá-las, o que tornava tecnicamente inviável para as prestadoras de TV por assinatura demonstrarem o cumprimento desse indicador.
A partir dessa constatação, o Conselho Diretor da Anatel, em caráter cautelar, decidiu suspender temporariamente a aplicação do indicador ICC, mesmo que à época ainda estivesse em vigor a disposição regulatória que a respaldava. Essa medida foi tomada como antecipação à revisão posterior do regulamento do PGMQ – TV por Assinatura[12].
Em princípio, a ausência de demonstração do cumprimento do indicador sujeitaria o prestador do serviço de TV por assinatura às sanções previstas na LGT. No entanto, entendendo que essa exigência já se encontrava tecnicamente inadequada e defasada em um momento posterior, o colegiado, já antecipando uma possível revogação, e considerando razões de interesse público que justificavam o afastamento temporário da incidência do art. 13 em comento, entendeu por suspender sua aplicação cautelarmente.
O terceiro caso envolve a discussão sobre a validade de cláusula de exclusividade nas ofertas de atacado de roaming[13].
Em voto-vista apresentado por este autor, assentou-se a importância da preservação da segurança jurídica, da proteção de confiança e da necessidade de evitar a aplicação retroativa de novos entendimentos. Isso ocorre num cenário em que o Conselho Diretor da Anatel tradicionalmente tem um posicionamento contrário à inclusão de cláusulas de exclusividade em produtos de atacado de telecomunicações, exceto em casos devidamente justificados.
Nos processos em estudo, decidiu-se por proibir a cláusula de exclusividade. No entanto, foi estabelecido que a Agência deverá acompanhar a sua influência na ampliação da infraestrutura nos casos do roaming em regime de exploração industrial ou no uso de redes de telecomunicações que adotam o padrão tecnológico 5G standalone.
Ficou definido que, em regra, não há evidências empíricas no sentido de que o emprego de cláusulas de exclusividade ensejaria a ampliação da infraestrutura de rede. Entretanto, não se exclui uma reavaliação futura desse entendimento à luz de novas evidências empíricas.
Para subsidiar futuras considerações sobre a questão, aguardam-se a obtenção de novos dados e evidências relacionados à proporção de tráfego em roaming e aos níveis de investimento, com a análise dos resultados que envolvem a capacidade de rivalidade dos entrantes e o nível das barreiras à entrada no mercado do Serviço Móvel Pessoal.
Assim, após o encerramento do prazo de dezoito meses de monitoramento assinalado pelo Conselho Diretor da Anatel, esse contexto deverá ser reavaliado. O Colegiado sinalizou a possibilidade de revisão da proibição das cláusulas de exclusividade, caso haja evidências sólidas que apontem nesse sentido.
Embora a atuação da Anatel deva se respaldar sobretudo pelo atendimento do princípio da legalidade e da segurança jurídica, os exemplos acima denotam que esse rigor nem sempre será possível, eis que eventualmente poderá implicar em prejuízos significativos ao setor regulado. Nestes casos – os quais, enfatiza-se, são excepcionalidades – deve-se, com a devida parcimônia e com uma avaliação acurada e técnica das evidências que lastreiam os fundamentos e as possíveis consequências da futura decisão, buscar a aplicação de um entendimento que não imponha desnecessariamente ônus e obrigações sobre esse setor.
Para alcançar o equilíbrio desejado, é fundamental realizar uma análise abrangente dos impactos potenciais das alterações regulatórias. Isso inclui a realização de testes piloto e consultas públicas para avaliar a viabilidade e aceitação das propostas. Ademais, não se deve descartar a opção de manter o regramento atualmente em vigor, ou seja, a permanência do status quo.
Em suma, a combinação de evidências científicas, insights comportamentais e a busca pela estabilidade são pilares essenciais para o desenvolvimento de um ambiente regulatório eficaz e sustentável. Adotando uma abordagem abrangente e colaborativa, podemos promover políticas que não apenas atendam às necessidades do presente, mas igualmente preparem o terreno para um futuro mais próspero e equitativo para todos.
* – Sobre o autor – Alexandre Freire é Conselheiro Diretor da ANATEL. Presidente do Centro de Altos Estudos em Comunicações Digitais e Inovação Tecnológica da ANATEL – CEADI. Presidente do Comitê de Infraestrutura de Telecomunicações da ANATEL. Visiting Scholar at the Goethe Universität Frankfurt am Main’s Faculty of Law. Doutor em Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito pela UFPR. Nomeado pela Presidência da República como membro da Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU.
Fonte: Teletime
Foto: ANATEL